31 CISTERNAS ROTAS – I

SUBTILEZAS DO ERRO


JEREMIAS, o profeta, falando das falsas fontes de ensino, chama-as de "cisternas rotas, que não retêm as águas" (2:13). Deixar as Escrituras – infalível Palavra de Deus – para escorar-se nos chamados Pais da Igreja é, sem dúvida, abeberar-se nas cisternas rotas da confusão, da dúvida, da incerteza e da incoerência. 


Embora alguns desses homens tenham sido piedosos, a verdade é que não eram inspirados, e seus escritos não são infalíveis. Pelo contrário, há neles uma eiva tremenda de absurdos e ilogismos insanáveis. Eis a amostra: 


Inácio, por exemplo, pretende que se torna assassino de Cristo quem não jejua no sábado ou no domingo (1); defende a transubstanciação, considerando herege quem admite apenas o simbolismo da santa ceia (2); exalta demais a autoridade do bispo, pondo-a acima da de César, chegando ao cúmulo de afirmar que, quem não o consulta, segue a Satanás (3). 


É bom lembrar que, das quinze cartas atribuídas a Inácio, oito são absolutamente falsas, e as restantes são duvidosas, cheia de interpolações e acréscimos. Não se sabe exatamente o que esse Pai escreveu!!! 


Barnabé (se é que existia tal personagem), diz que a lebre muda cada ano o lugar da concepção (4), que a hiena muda de sexo anualmente (5), e a doninha concebe pela boca (6). Afirma que Abraão conhecia o alfabeto grego (séculos antes que tal alfabeto existisse) (7) ; alegoriza a Bíblia, compara a circuncisão ao "oitavo dia" que afirma ser o dia de reunião (quando não existe oitavo dia na semanal) (8). Sua epístola é espúria, disparatada e não merece crédito. 

Justino era quiliasta*; ensinava, entre outros absurdos, que os anjos do Céu comem maná (9), e que Deus, no princípio do mundo, deu o Sol para ser adorado. (10) 

Clemente de Alexandria sustenta que os gregos se salvam pela sua sabedoria (11); afirma que Abraão era sábio em astronomia e aritmética, e que Platão era profeta evangélico. (12) Erra demasiada e crassamente nas citações que faz da Bíblia. 

Tertuliano, o que mais heresias ensinou, era sarcástico, injurioso, apaixonado, colérico, fanático e aderiu à heresia montanista.** Diz regozijar-se com os sofrimentos dos ímpios no inferno (13) Afirma que os animais oram (14). Defende o purgatório, a oração pelos mortas, e outros despautérios doutrinários (15) 

Cipriano, de feiticeiro que era no paganismo, tornou-se anabatista na igreja. 

Eusébio (já além da era patrística) era ariano.*** 

Irineu quer que as almas, separadas do corpo, tenham mãos e pés (16) Defende a supremacia de Roma, alegando que a Igreja tem mais autoridade do que a Palavra de Deus (17) Diz que os "animais imundos" são os judeus (18) defende ardorosamente o purgatório (19), e chega até a dar a idade certa de Cristo que, segundo ele, tinha quase cinqüenta anos (20) 

Poderíamos alongar esta relação citando outros "pais" e seus despautérios. Par aí se vê, porém, o absurdo de citá-los para comprovar doutrina. Enquadram-se perfeitamente na conceituação do profeta Jeremias: são verdadeiras cisternas rotas. 

Adão Clarke, abalizado comentarista evangélica, depois de considerar a obscuridade dos escritos destes "pais," conclui: "Em ponto de doutrina a autoridade deles é, a meu ver, nula." (21) 

Eduardo Carlos Pereira, douto escritor evangélico, disse que a patrística além de constituir-se "testemunha falível de autoridade humana," era "tradição que a crítica não pode sequer firmar no terreno digno da História." Diz ainda que se trata de "tradição confusa e contraditória." E remata: "Pululam, nos anais primitivos da Igreja, escritos espúrios ou apócrifos, que revelam a tendência perigosa para a ficção e para as lendas, que degeneraram largamente nas fraudes pias dos tempos medievais." (22) 

O Arcediago Farrar acrescenta: "Há pouquíssimos deles cujas páginas não estejam repletas de erros, erros de método, erros de fatos, erros históricos, de gramática, e mesmo de doutrina." (23) 

Mosheim, afamado historiador eclesiástico confirma: "Não é de admirar que todas as serras dos cristãos podem encontrar nos chamados pais algo que favoreça sua própria opinião e sistemas." (24) 

Sim, os escritos patrísticos provam tudo, amparam a maior heresia. O leitor agora vai ter um choque ao ler estas estarrecedoras declarações, extraídas de uma publicação batista, antiga mas autêntica. Em resposta um jovem ministro que perguntara ao jornal como poderia provar a sua congregação uma coisa, quando nada encontrasse com que prová-la, na Bíblia, o pastor Levi Philetus Dobbs D. D. escreveu o seguinte: 

"Recomendo, no entanto, um judicioso emprego dos Pais em geral, da mais alta confiança para qualquer pessoa que esteja na situação do meu consulente. A vantagem dos Pais é dupla: em primeiro lugar porque exercem grande influência sobre as multidões; em segundo lugar porque você poderá encontrar o que quiser nos Pais. Não creio que haja opinião mais tola e manifestamente absurda, para a qual você não possa encontrar passagens para sustentá-la nas páginas daqueles veneráveis homens de experiência. E para a mente comum, tanto vale um como outro. Se acontecer que o ponto que você quer provar nunca tenha ocorrido aos Pais, então você pode facilmente mostrar que eles teriam tomado seu lado se apenas tivessem pensado no assunto. 

"E se, por acaso, nada há para sustentar, mesmo remotamente, de maneira favorável o ponto em questão, não desanime: faça uma boa e vigorosa citação e coloque nela o nome dos Pais, e pronuncie-a com ar de triunfo. Ela será igualmente valiosa. Nove décimos do povo não se detém a indagar se a citação apóia a matéria em debate. Sim, irmão, os Pais são a sua fortaleza. Eles são a melhor dádiva do Céu ao homem que tenha uma causa que não possa ser amparada por nenhum outro modo." (25) (Grifos acrescentados.) 

Duvidaríamos dessa monstruosidade se não a tivéssemos lido em letra de forma!!! 


Citação de Inácio


Diz o oponente: "Inácio, discípulo de João, o apóstolo, escreveu cerca do ano 100 da nossa era o seguinte: 'Aqueles que estavam presos às velhas coisas vieram a uma novidade de confiança, não mais guardando o sábado, porém vivendo de acordo com o dia do Senhor." 

Vamos passar esse argumento pelo crivo da crítica e ver o que restará dele.  

1. A crítica não confirma que Inácio fosse discípulo de João, nem que esse escrito date precisamente do ano 100. Como se disse no preâmbulo, a Inácio são atribuídas 15 epístolas. Serão autênticas? Diz a Enciclopédia Britânica, a respeito: 

"É agora opinião universal dos críticos que as primeiras oito dessas pretensas cartas de Inácio são espúrias. Trazem em si provas indubitáveis de serem produto de uma época posterior àquela em que Inácio viveu... Por unanimidade são hoje postas à parte como falsificações..." (Grifos acrescentados). 

Depois de considerações críticas textuais dos "escritos" de Inácio conclui: 

"... alguns vão a ponto de negar que tenhamos qualquer escrito autêntico de Inácio, enquanto outros, embora admitindo as sete cartas mais curtas como provavelmente sendo dele, ainda duvidam muito de que estas estejam livres de intercalações." (Grifos nossos.) 

Diz Schaff que estes "documentos... logo se tornaram tão interpolados, cortados e mutilados, que hoje é quase impossível descobrir com certeza qual é o genuíno Inácio da História ou o pseudo Inácio da tradição." (26) 

Pois bem, nesta cisterna rota, neste cipoal de confusões, nestas águas turvas e revoltas, vai o acusador buscar uma citação em abono do espúrio dia de repouso. O trecho citado encontra-se na Epístola de Inácio aos Magnesianos, cap. IX, §1. 

2. Além disso, a citação é duvidosa (pois não se pode ter certeza se é mesmo de Inácio ou se foi interpolação). E o pior é que no texto grego original mais popularizado e difundido não se encontra a palavra "dia" [hemera, ou outra equivalente]. Na realidade a frase, nestas versões, é obscura. Aquele final "não mais guardando o sábado porém vivendo de acordo com o dia do Senhor," está no grego, nas versões comuns, literalmente assim: 

meketi     sabbahizontes,    alla               kata   kyriaken     zoontes 

não mais sabatizando,  mas  conforme   o   do Senhor   vivendo 

Como se vê, fica assim obscura e sem nexo a expressão de Inácio "não mais sabatizando, mas de acordo com o (?) do Senhor vivendo", exigindo um aditamento para formar sentido. E então o bispo Lightfoot, advogado do domingo, teve a idéia de acrescentar, ou melhor, de encaixar ali a palavra "dia," forçando o duvidoso Inácio a dizer: "... não vivendo mais para o sábado, mas para o dia do Senhor." (27) 

Deu-se, portanto, uma adulteração grosseira, flagrante, uma fraude enfim que é repetida impensadamente pelos dominguistas em geral. Será decente firmar doutrina em base tão precária, fraudulenta e indigna de crédito? Mas não é só. Os eruditos, estudando a citação de Inácio, julgam que a interpolação da palavra "dia" destoa por inteiro do contexto, porque não se vive de acordo com um dia, mas sim de acordo com um princípio, uma idéia, um exemplo ou uma orientação na vida. 

E encontramos em Patrologia Graeca, de Migne, Vol. 5, pág. 669, obra abalizadíssima, o original de Inácio desta forma: "Não mais sabatizando, mas vivendo de acordo com a vida do Senhor." O sentido aí é que a vida de Jesus se reflita em nossa vida também. 

O Dr. Frank Yost afirma: "Os aludidos eruditos [Lightfoot e Lake] omitiram a palavra vida para possibilitar a inserção da palavra dia. Mas a palavra vida lá se encontra, e forma sentido lógico, quando devidamente traduzida, sem subterfúgio, do original grego." (28) 

O próprio contexto dessa Epístola de Inácio aos Magnesianos revela que o genuíno ou suposto Inácio tratava não do dia da ressurreição, mas da vida divina que, mediante o Senhor ressuscitado, capacitava o crente a viver uma vida cristã de fé, livre do formalismo judaico. Em toda a epístola não há qualquer referência ao dia de adoração. 

Em conclusão: as versões populares omitem qualquer substantivo antes do genitivo "do Senhor." A versão crítica original consigna a palavra vida e jamais dia. E assim se reduz a frangalhos o argumento estribado nessas palavras atribuídas a Inácio. 


Referências: 


Epístola de Inácio aos Filipenses, cap. XIII, § 3°., in fine. 

Epístola de Inácio aos de Esmirna, cap. VII, § 1º. 

Epístola de Inácio aos de Filadélfia, cap. IV, § 1º. e também na Epístola de Inácio aos de Esmirna, cap. IX, § 1º.  

Epístola de Barnabé, cap. X, § 6º. 

Idem, cap. X. § 7º. 

Idem, cap. X, § 8º. 

Idem, cap. IX, § 8º. 

Idem, cap. XV, §§ 8º. e 9º. 

Justino Camelini, p. 274. 

Justino, Apologia sobre o Fim. 

Clemente, Stromata, Livro 6, cap. 11. 

Idem, Livro 5, cap. 14. 

Tertuliano, As Sombras, cap. 50. 

Tertuliano, Orando (discurso). 

Ibidem. 

Irineu, Contra Heresias, Livro III, cap. 63. 

Idem, Livro III, cap. 4, §§ 1º. a 3º. 

Idem, cap. 8. § 4º. 

Idem, Livro IV, cap. 27, § 2º. 

Idem, Livro II, cap. 22, § 6º. 

Clarke's Commentary, on Proverbs 8. 

E. C. Pereira, O Problema Religioso na América Latina, págs. 215, 219 e 227. 

Farrar, The History in Interpretation, págs. 162, 163 e 165 (ed. 1886) 

Mosheim, Ecclesiastical History, Liv. 1, part. 2, cap. 3, seção 10. 

Jornal National Baptist, march 7, 1878, Dr. Wayland, redator.  

History of the Christian Church, 2º. período, parte 165, vol. 2, pág. 660. 

Frank H. Yost, Early Christian Sabbath, cap. 5. 


* Sectário do quiliasma, doutrina herética segundo a qual os predestinados, depois de julgamento final, ficarão ainda mil anos na Terra, no gozo de maiores delícias. 

**Aderente da heresia de Montano, do segundo século, que fazendo tábua rasa dos dogmas e disciplina da igreja, insistiam na intervenção perpétua do Parácleto (Espírito Santo) inspirando os homens por meio de revelações especiais.

***Partidário da heresia de Ário, que negava a divindade de Cristo.